Lugares Esquecidos
Um retrato de fábricas abandonadas
Perdidas na memória
Portugal guarda vestígios de um património industrial que se tem vindo a degradar. Não se sabe ao certo quantas fábricas são. Sabe-se apenas que muitas foram a força motriz das suas comunidades. Mas agora acumulam apenas memórias. No norte do país, a Dextra, a Rosa e a Confiança são o espelho desta realidade.
Telhas caídas, tijolos partidos e paredes abertas. O céu é a tinta que dá cor às propriedades. A Cerâmica Rosa em Viana do Castelo, a Saboaria e Perfumaria Confiança de Braga e a Dextra em Guimarães estão hoje sem portas e janelas. Em comum, para além de se apresentarem devolutas, têm um historial marcante para as comunidades que, em massa, trabalhavam nestas indústrias.
Aos poucos, começaram a surgir crises financeiras, quebra nas vendas, atrasos no pagamento de salários. Consequentemente, fizeram-se sentir greves e protestos. O encerramento acabou por ser a realidade. Até hoje ainda ninguém lhes deu continuidade.
Olhar para o estado atual das fábricas, deixa no ar a curiosidade de perceber como foram no passado. As recordações do espaço cheio de homens e o fumo a sair das chaminés estão bem presentes na memória de Carlos Sousa, que trabalhou na cerâmica Rosa entre 1977 e 2002.
A entrada construída com “tijolo burro”- fabricado a partir de argila extraída em barreiros próprios- e os largos metros que dão altura ao trio de chaminés presente na propriedade da Cerâmica Rosa, escondem por detrás a fábrica que desde 2002 deixou de produzir. Os 26 anos de trabalho, “quase uma vida”, vêm à memória de Carlos Sousa. O antigo funcionário visita a fábrica pela primeira vez desde o fecho e nota-se a emoção na voz ao regressar aquele local. É também com esperança que procura a bicicleta que tinha lá ficado há 26 anos a “dormitar”. Era assim que ia para o trabalho. Mas não a voltou a ver.
As silvas substituíram a maquinaria como “a maquinaria chegou a substituir muitos homens”, conta o funcionário. Já não existem os fornos mas a imagem das suas dimensões circulares estão bem presentes na memória de Carlos Sousa. Durante a visita, as quatro secções ganham vida aos olhos do “miúdo que ali cresceu”. Começou por levar os tijolos para os fornos e, entretanto, os anos na casa permitiram-lhe fazer um pouco de tudo.
A modernização da fábrica marcou a fase mais produtiva da “Rosas”. O processo manual e os fornos a altas temperaturas - 1200ºC - em concreto, começaram a ser substituídos por processos mais rápidos. As temperaturas diminuíram com os novos fornos circulares que cozinhavam a 900ºC, o que implicou mudanças na matéria prima.
Os jazigos de barro branco e caulino existentes em Alvarães permitiram a exploração das propriedades do solo. Era nas Barreiras que esta indústria retirava, no início, a sua matéria prima. No entanto, os novos fornos começaram a exigir um barro diferente. É em Aveiro que António Silva Rosas, proprietário da fábrica, passa a comprar o “novo” barro.
Os provérbios e quadras populares que se enraizaram na freguesia estão ligados a esta indústria. José Maria Pinto, licenciado em História, é também um curioso pelas coisas antigas e património histórico e industrial de Alvarães. Talvez por isso tenha acompanhado a evolução da cerâmica e, como habitante da freguesia, viu de perto a degradação da fábrica.
O estado de ruína que cimenta os tijolos já não passa despercebido. A antiga fábrica acabou por se tornar um ponto de referência para quem circula na estrada nacional, que atravessa as duas freguesias: Alvarães e São Romão de Neiva. Muitos são os fotógrafos que por lá passam em busca da melhor fotografia emoldurada pelo trio de chaminés. Eventos e desfiles tiveram também como palco a fábrica Rosa. Ainda hoje é ponto de referência, dando assim visibilidade à freguesia.
“É uma pena ver este património em baixo”. Para o historiador, a salvaguarda física da propriedade era, sem dúvida, pertinente: “Devia ter sido criado um museu, mas não havia sensibilização nem sangue novo”, justifica. Mas até então, preservam-se apenas as memória, avivadas por uma visita que está a terminar. Quando a fábrica encerrou, em 2002, o grande parte das infraestruturas foram levantadas para poder extrair o ferro para vender.
Ao final do dia, findada a visita de Carlos Sousa, os portões voltam a fechar-se. A próxima visita ainda não tem data marcada.
Uma visita aos tempos de glória
A cidade de Guimarães está já habituada a ver edifícios deixados ao abandono por descuido, falta de planos para os mesmos, ou então porque estão esquecidos. A Dextra é um destes casos. Desde 1995 que está entregue a um destino incerto que lhe tem roubado a identidade.
O sol vai alto na freguesia de Santo Estevão de Briteiros, em Guimarães, quando Rosa e Fátima, antigas trabalhadoras, chegam à fábrica Dextra. “Há 19 anos que não vinha cá”, confessa Rosa com a saudade na voz.
Passaram-se duas décadas passaram desde o fecho da fábrica que lançou 170 trabalhadores para o desemprego. As silvas apropriam-se dos jardins e dos muros. A tinta vermelha das paredes está desbotada. As janelas estão nuas. “Ao estado que isto chegou”, suspira Fátima.
Nos primeiros anos após o fecho da fábrica, muitos foram aqueles que aproveitaram para irem buscar os metais e coisas de valor que por lá tinham ficado, “até as loiças dos balneários levaram, meu Deus!”. Entretanto, a Dextra servia de abrigo a pessoas que não tinham onde ficar. Agora, o enorme espaço que está ao abandono é, entre outras coisas, aproveitado para a prática de paintball. As marcas cor de rosa, amarelas e verdes estão um pouco por todos o edifício.
“Nós não podíamos entrar por aqui. Por aqui só entravam os da direção, nós tínhamos que entrar por uma porta nas laterais do edifício”, explica Fátima enquanto sobe a rampa que leva à antiga entrada principal da Dextra. Do elevador, nota, já só resta a porta, o resto foi também levado.
É pelas escadas que Fátima e Rosa seguem, quase que inconscientemente; como se o tivessem feito ontem. “Nos 19 anos em que cá trabalhei nunca tinha entrado nesta sala”, confessa Rosa com um sorriso. Por momentos fica à porta, quase como se esperasse uma autorização para entrar. “Acho que era o gabinete da direção. Nós não tínhamos autorização para vir aqui”.
No primeiro andar da fábrica, Rosa relembra o que existia há 20 anos. Como se tivesse recuado no tempo, vai apontando e dizendo, de memória, onde estavam as coisas: as malhas, as mesas, as pessoas.
De repente, Rosa baixa-se e, surpresa, puxa algo que está por baixo de restos de malhas antigas e vidros partidos. “Ai, meu Deus, até o arquivo das encomendas deixaram aqui!”. Com um dossier preto na mão, vai folheando o seu conteúdo, muito devagar, como se de um pequeno tesouro se tratasse.
As janelas que cobriam o primeiro e o segundo andar quase na totalidade desapareceram. O chão tem agora uma imensa “carpete” de malhas antigas.
Quando há 20 anos fecharam as portas da fábrica foi para não mais as voltar a abrir. Lá dentro ficaram malhas, máquinas e dossiers com arquivos do pessoal e das encomendas. Os vizinhos, que já o eram há 20 anos, contam que era muito comum encontrarem na fábrica “capas e capas” de coisas da Dextra.
Hoje, está apenas a capa preta que Rosa encontrou: “Até um cheque aqui está!”. Perdida pelo primeiro andar, está também uma ficha de uma antiga trabalhadora: “Cândida? Não me lembro dela”, diz Fátima, abanando a cabeça como se não acreditasse que tivesse encontrado aquilo.
De novo no rés do chão, Rosa e Fátima percorrem o caminho que tantas vezes fizeram. “Este corredor entre estes dois edifícios era todo coberto com umas chapas. E como vêem, agora não há nada”, diz Rosa ainda olhando para cima como que esperando ver algo diferente.
“Aqui eram os balneários. Este é o das mulheres, ali à frente é o dos homens”, aponta Fátima. Agora, nada mais há que o chão e silvas que descem pelas paredes. Tudo o resto foi levado. “Como é que deixaram isto chegar a este estado?”, pergunta Rosa a si mesma.
Entrando numa das maiores sala da fábrica, o cenário não é aquele que se espera. Onde, antigamente, estavam metros de filas com mesas e máquinas, agora estão troncos de árvores cortados e colchões num círculo, quase como a montar um “forte”. Tratam-se de “esconderijos” montados por aqueles que vêem na Dextra um bom local para a prática de paintball.
“Ali em baixo era a tinturaria”, diz Fátima. Descendo as escadas, explica que haviam duas filas de imensos metros onde se “tinturavam” as malhas. “Eu cheguei a trabalhar aqui”, encarando o vazio.
A passagem dos anos foi ingrata para a Dextra. Aquela que outrora fora uma das maiores fábricas da zona, está, visivelmente, ao abandono. Pouco a pouco, as silvas vão tomando conta das paredes e os grafitis são as poucas coisas que dão cor aos muros sem vida.
22 anos passaram desde o fecho da fábrica. Aqueles que lá trabalharam foram obrigados a encontrar trabalho em outras fábricas. Ainda hoje, os trabalhadores aguardam que o tribunal de Guimarães dê ordem de rateio.
“É muito triste ver isto assim. Trabalhei aqui 19 anos e gostava muito de cá andar. E, acredito, que se hoje estivesse aberta, haveria de andar aqui na mesma.”, afirma Rosa.
A fábrica que "perfumou" Braga
Hoje quem passa na Rua Nova de Santa Cruz não dá pela presença da antiga fábrica Confiança, que chegou a ser a maior fábrica de Braga. Sobram planos para a reabilitação do espaço, ainda assim, está há mais de dez anos à espera de melhor sorte.
Quem vê a Rua Nova de Santa Cruz, hoje em dia, não a imagina sem os inúmeros prédios com vários metros de altura e cores distintas. Não imagina também que o antigo prédio n.º 17 ocupa aquele mesmo lugar há quase 100 anos. É um dos mais antigos – se não o mais antigo – edifícios da rua.
Nascido de uma pequena oficina tornou-se uma espécie de ex-libris da cidade, “A fábrica chegou a ser a maior de Braga”, diz Nuno Coelho que dedicou vários anos ao estudo do material gráfico da empresa dando origem à sua tese de doutoramento. Foi a segunda saboaria da Península Ibérica e houve um tempo em que foi a número um de Portugal.
Mas longe vão os tempos de glória da Confiança. Agora, no exterior daquele edifício, considerado por muitos histórico, estão as marcas da sociedade de hoje: grafitis, cartazes e desenhos espalham-se pelas paredes. No interior, o vazio. Um vazio físico mas que permite que as memórias continuem a existir nas pessoas que lá trabalharam ou que admiravam o edifício e a fábrica.
“Há uma relação muito afetuosa da população de Braga” em relação à fábrica, diz Nuno Coelho. Talvez por isso, quem por lá passa a olha com tristeza maldizendo o destino que esta teve. Os vizinhos da Confiança não se conformam com o que vêem diariamente: “Está ali parada, não fazem nada. É uma tristeza”.
Quando o edifício foi comprado pelo município em 2011 foi aberto um “concurso de ideias” onde se pretendia reunir várias opiniões sobre o futuro da Confiança.
Apesar de todas as ideias apresentadas, a primeira morada da Saboaria e Perfumaria Confiança continua de luto. A falta de fundos, ou então de “vontades”, leva a que o antigo prédio nº17 da Rua Nova de Santa Cruz permaneça esquecido.
Em 2014, Braga celebrou o 120º aniversário da Saboaria e Perfumaria Confiança. Num evento inédito, as grandes portas da fábrica voltaram a abrir-se ao público.
Muitos foram aqueles que quiseram aproveitar a oportunidade para colmatar as saudades acumuladas da fábrica: antigos trabalhadores e familiares dos fundadores, mas também pessoas que, simplesmente, admiravam a Confiança.
No entanto, a visita foi breve. Rapidamente as portas voltaram a fechar-se. E com elas, voltou a incerteza quanto ao futuro da antiga fábrica Saboaria e Perfumaria Confiança.
Qual é o futuro?
A Cerâmica Rosa, a Dextra e a Saboaria e Perfumaria Confiança tiveram vidas diferentes, mas o fim foi o mesmo. Perderam a identidade e a vitalidade que as caracterizavam. Agora, guardam apenas memórias.
A Confiança, por ser do município de Braga, tem um leque de ideias para o futuro. Ideias que não passam disso mesmo, de planos no papel que não se concretizam.
Já esteve para ser um museu relacionado com a fábrica, esteve para albergar dependências da junta de freguesia ou então algo relacionado com a Universidade do Minho. Em 2012, a câmara abriu um concurso de ideias que recebeu 77 propostas. Ideias estas que estão em standby. Mas então, se não é pela falta de projetos, qual é o entrave para a reabilitação da Confiança? A Câmara baliza-se pela falta de fundos. Entretanto, o antigo prédio n.º17 continua de luto.
Por outro lado, o edifício da Dextra pertence a uma entidade privada pelo que o município nada pode fazer para reabilitar a fábrica. Vizinhos e antigos trabalhadores dizem saber o que fariam com a antiga Dextra: restaurar o edifício para que uma grande empresa se possa firmar lá.
À semelhança da Saboaria, também na Rosa a proposta de um museu está lançada sobre a mesa. A junta de freguesia detém uma parte da propriedade da Cerâmica Rosa e tenciona, contando com a colaboração da câmara municipal, criar um museu. O objetivo é tentar reabilitar a maquinaria ainda existente na fábrica e expô-la. Recentemente, a empresa Metaloviana adquiriu parte da propriedade que tem usado como armazém.
“A questão não é a protecção da indústria, mas sim a protecção do património industrial como forma de salvaguarda de uma memória e identidade de uma sociedade”, defende José Manuel Cordeiro, presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial.
Não existe legislação para a protecção de fábricas com interesse histórico e patrimonial, no entanto estes edifícios despertam o interesse da comunidade. É através de fóruns e de redes sociais que se vão dando a conhecer algumas destas fábricas espalhadas pelo país.
A valorização dos edifícios, explica José Manuel Cordeiro, deve ser feita numa perspectiva que contribua para o desenvolvimento económico e cultural. Os objetivos para promover a defesa e salvaguarda do património industrial “falham” quando não conseguem salvar estes imóveis. Entretanto, aqueles [edifícios] que deveriam permanecer como marcos históricos nas comunidades, como memória do que melhor se fez, ficam esquecidos.
Ficha técnica
Carina Teixeira
O jornalismo é algo mais que gostar de escrever; é gostar de aprender e fazer coisas novas todos os dias. O sonho é poder fazer disto vida, é poder trabalhar naquilo que me apaixona.
Sara Ferreira
Ouvir as histórias, fotografar e gravar é algo natural para uma jovem que, com gosto, leva o jornalismo a sério. O olhar e o bichinho sempre estiveram presentes na menina que, mesmo na pequena aldeia, sonhava alto.
lugaresesquecidosjmm@gmail.com
Agradecimentos:
Nuno Coelho - “O Design de embalagem em Portugal no século XX – Do funcional ao simbólico – O estudo de caso da Saboaria e Perfumaria Confiança” (Tese de Doutoramento em Arte Contemporânea | 2013)
Rosa Ribeiro - antiga trabalhadora da Dextra
Fátima Ribeiro - antiga trabalhadora da Dextra
Carlos Sousa - antigo trabalhador da Cerâmica Rosas
Fernando Martins - Presidente da Junta de Freguesia de Alvarães (Viana do Castelo)
Rui Ferreira - assessor da vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Braga
José Maria Pinto - professor de História